domingo, 5 de junho de 2011

Tem jeito?

Eu só consegui falar alguma coisa depois de meia hora. Os alunos estavam entrando e saindo da sala. Outros alunos, de outras turmas, também entravam e saíam da minha sala. Alguns jogavam cadeiras contra os outros. E outros alguns jogavam palavrões do mais baixo calão em cima dos seus colegas. A professora da turma (que estava pra se aposentar) não parava de gritar. Bradava lições de moral. Parecia uma mãe desesperada. "Vê, minha filha? Tem jeito pra uma turma dessa?", ela dizia isso num intervalo de 5 minutos, no máximo. "Deixem  Maisa falar! Roda a roleta, Maisa! Eu quero um computador.", um menino loiro e cabeludo, em meio a risadinhas, conseguiu fazer a turma se acalmar pra que eu pudesse falar. Fiquei abestalhada com o meu primeiro apelido revelado. Comecei a minha aula. Me senti como se falasse pro meu espelho. Só eu interagia comigo. Os alunos riam, escreviam alguma coisa que eu não queria ter conhecimento. Talvez estivessem me desenhando. Podiam até estarem escrevendo uma crônica. Sobre mim. Descendo o cacete, assim como eu fazia nos tempos de colégio.
Foi uma merda! Nunca tinha dado uma aula tão ruim. Uma aula de dez minutos que não rendeu nenhum minuto. O sinal tocou e todos os outros alunos das outras turmas entraram e saíram da sala. A professora com quarenta anos de profissão veio até mim e soltou: "Vê, minha filha? Tem jeito pra uma turma dessa?".
Imaginei essa senhora dando aula todos  os dias, pra um monte de pirralho que não está nem aí pra o que ela fala. Passar quase meio século nessa tortura é muito amor pelo que faz. Ou único meio de sobrevivência. Conheço muita gente que só é professor porque é mais "fácil" ser professor. Em qualquer buraco você pode ser professor. "Tenho jeito com criança e to precisando de dinheiro. Vou ver se dá". Foi o que minha mãe disse quando iniciou a sua carreira de melhor professora do mundo.
Mamãe estava terminando a faculdade de Educação Física e tinha uma filha, eu. Precisava pagar a faculdade e as minhas fraldas. Falou com a amiga de uma amiga que tinha uma amiga que trabalhava com uma amiga que precisava de uma amiga pra auxiliar em sala de aula, pois não aguentava o tranco sozinha. Era muito pirralho com a bunda suja. Foi um caminho sem volta. Mamãe chora até hoje, pois não aguenta mais a sala de aula. Os cabelos brancos apareceram mais cedo. Os problemas com os filhos foram aumentando. Gastou mais dinheiro com terapia. Mas é a única coisa que ela sabe fazer muito bem, por mais que não goste.
"Eu choro todas as noites, minha filha. Fico me perguntando como eu aguentei esses anos todos", dizia a professora no intervalo. Eu já estava decidida que eu não queria ser professora de escola. Meus estrangeiros são alunos maravilhosos. São todos sedentos pela minha aula. Eles precisam aprender e sabem disso e querem isso. Eles não jogam cadeira, nem se penduram no ventilador de teto, nem se cagam nas calças. Eu tenho que dizer que é terrível, pra ninguém tomar o meu lugar.
"Professora, vem aqui rapidinho. Estagiária, pode vir também". Menino, fui chamada pra algo muito importante. Era o último dia da professora na escola. Ela ia se aposentar, finalmente. A coordenadora abriu a porta de uma sala e dentro dessa estavam alguns muitos alunos de várias turmas, algumas bolas, alguns bolos, alguns salgadinhos e todos os outros mal humorados professores. Eu pensei que a professora ia ter uma turica. Ela colocou a mão no coração e começou a chorar.  Todos queriam tirar foto com ela, todos queriam falar algo bom dela, todos queriam dar um cheiro e dizer que vão ficar com saudade.
Ela fez um belo discurso. Citou Camões, Pessoa  e Drummond. Falou um excelente português culto com um belo sotaque paraibano bem puxado. "Não aguentarei permanecer distante de vocês. Serei voluntária da escola", e chorou. E os alunos choraram. E as professoras cinquentonas choraram. E o diretor da escola chorou. Depois tocaram um forró e as aulas foram suspensas. Os professores acharam ótimo não terem que dar aula. Eu achei ótimo e fui pra casa.
Tenho que planejar as aulas da semana. Mas tenho medo de ficar nesse negócio. Não quero ter cabelos brancos cedo. Não quero me estressar com os meus filhos, nem quero fingir ser legal e engraçada pra agradar pai de aluno. Não quero chorar tanto...  E, definitivamente, não quero limpar a bunda dos outros.