Pouco conhecido no
Brasil e um tanto menosprezado em Recife, o pintor, desenhista e escultor
Francisco Brennand continua isolado em sua Oficina, no bairro da Várzea,
subúrbio da Veneza brasileira. Tendo inspirações em Gauguin, Balthus e Miró,
sua obra tem como tema principal o mistério da reprodução, não só humana, mas
da vida. Uma maneira de eternizar algo que é mortal. Mulheres, ninfetas, falos,
vulvas, mitos e toda a sua simbologia são marcas de suas esculturas, quadros e
desenhos.
Apesar de se considerar
um pintor e não um escultor, suas peças de cerâmica são o ponto de partida para
um olhar curioso. A surpresa não é tão grande quando se descobre que, na
verdade, o artista produz muitos quadros de óleo sobre tela e que essa é a sua
verdadeira paixão. Estes estão expostos no salão Accademia e de lá não sairão.
Suas obras não são vendidas, criam raízes como árvores. O seu sustento se dá na
venda de ladrilhos e revestimentos cerâmicos e de encomendas. Mas as suas obras
do museu ficarão por lá compondo um grande santuário místico.
Desde 1949, o artista
escreve um diário com detalhes de sua vida pessoal e artística. Este manuscrito
será transformado em um extenso livro que, segundo o artista, servirá de
material de estudo para críticos de arte. Inspirada nesse mesmo diário, sua
sobrinha-neta Mariana Brennand Fortes, dirigiu um documentário, que estreou
nacionalmente no dia 15 de março de 2013 e que estará à venda no início do
próximo ano, retratando a imagem de Brennand como um lobo solitário.
O senhor feudal
Recordo-me de ter encontrado a
velha Cerâmica São João em ruínas. Inclusive, cabe salientar que não havia necessidade
de um anteprojeto, pois as antigas paredes já indicavam aquilo que devia ser
refeito: as ruínas balizavam tudo. Portanto, toda e qualquer ideia chegava à
medida do trabalho em progressão. Talvez, por isso, eu resolvi chamar o lugar
de oficina, baseado na origem da
palavra ofício ( officium em Latim), que quer dizer trabalho, evitando o francesismo atelier.[1]
Francisco
Brennand nunca passou por grandes dificuldades financeiras. Sua família era de
grandes empresários da região do Recife. Em 1917, depois do declínio da
produção açucareira no nordeste, seu pai fundou a Olaria São João, que
fabricava telhas e tijolos para a região, garantindo o sustento da família.
Brennand passou parte da sua infância entre argila, fornos e artesãos. Mas foi
a paixão do pai por cerâmica que fez com que ele se tornasse um artista. Seu
pai contratava pintores e artesãos para fazer peças diferenciadas e os
apresentava ao filho que começava a sentir um certo fascínio pela pintura.
Começou
sua carreira como desenhista e pintor ainda na escola, onde conheceu Ariano
Suassuna. O autor paraibano desejava que as pinturas de Brennand estampassem as
capas de seus livretos de poesia. A técnica, a mistura de tintas, as
pinceladas, os pinceis adequados para cada estilo, isso ele aprendeu com o
Álvaro Amorim, acompanhando um processo de restauração de uma coleção do João
Peretti. Mas foi com Cícero Dias que Brennand teve o verdadeiro encontro com a
arte. O pintor pernambucano que se estabeleceu em Paris convenceu o pai de
Francisco a deixar o menino conhecer a Europa e estudar as manifestações
artísticas com quem as estava fazendo. Sem problemas com investimentos, o jovem
Brennand viajou para Paris e mal sabia que essa viagem seria um marco decisivo
para sua carreira.
Francisco
Brennand fez contato com pintores influentes e até trabalhou num ateliê bem
localizado por trás da Champs Elisè. O motivo de ir à Europa era estudar
pintura para aperfeiçoar sua técnica e criar o seu próprio estilo. Entretanto,
ao visitar uma exposição de cerâmica de Pablo Picasso sua ideia a respeito
dessa arte, por ele considerada menor, mudou.
(...)
como se fosse um propósito do destino, a primeira exposição que vi foi uma
exposição de cerâmica de Picasso (...), um gênio que estava fazendo cerâmica,
uma arte que eu, na época, até pela idade, me dava ao luxo de desprezar, o que
deixava o meu pai horrorizado.[2]
Com
uma família formada por empresários da cerâmica, Brennand sempre a considerou
uma arte utilitária, menor e sem a apreciação que a pintura atraía. Todavia conheceu a obra de grandes artistas
que ele já admirava pelas pinturas: Miró, Chagall, Matisse, Braque e Gauguin.
Voltou ao Brasil para estudar melhor a produção de cerâmica e compartilhou
durante muitos anos o espaço da Olaria com seus estudos cerâmicos. Em 1971, com
a Olaria São João já desativada,
Brennand resolve restaurá-la e iniciar o seu projeto de vida: transformar
aquelas ruínas em um grande templo/oficina/museu.
Foram
11 anos de trabalho para a construção do seu santuário. Sob conselhos da
arquiteta e amiga Lina Bo Bardi, Brennand preservou a estrutura da fábrica.
Tudo poderia ser reaproveitado. O artista revestiu quase tudo com sua própria
cerâmica. O ar fabril continua graças a estrutura preservada. A história se
eterniza na restauração do local. O Oficina Brennand é museu, escritório e
fábrica, pois o artista não sai de lá e é nesse lugar que ele produz e expõe
suas obras.
É
um museu a céu aberto. Na chegada se encontram as primeiras esculturas: Os
comediantes. Estes, com um leve sorriso, direcionam o olhar do visitante a um
Templo Central, rodeado de pássaros Rocco que protegem uma cúpula azul, onde
está o Ovo Primordial. Há um imenso jardim, com cerca de 2 mil metros, chamado
Parque Burle Marx, projetado pelo próprio paisagista. Também existe uma área
coberta, onde estão a maior parte de suas esculturas, todas dispostas muito
próximas, fazendo com que o visitante esteja bem perto das obras a ponto de
poder tocá-las. Um pouco mais afastado existe o Templo dos Sacrifícios, onde o
artista faz uma homenagem às culturas americanas que foram sacrificadas pelas
expedições europeias. Ainda existe a Accademia que abriga sua coleção de
desenhos e pinturas, algo que o artista nunca abandonou e que continua
investindo.
Inspirando
em Gauguin, que deixou a burguesia e a cidade e se isolou numa ilha para ter
melhores inspirações e obras diferenciadas, Francisco Brennand se isola da
sociedade recifense. Todos os dias o artista está em seu santuário. Os
visitantes podem sempre encontrá-lo a vagar pelas suas esculturas, ou ajudando
os seus artesãos, ou estudando uma nova obra. Brennand não sai do seu santuário
e na sua morte ficará por lá, em uma urna de cinzas que ele mesmo fez.
Os
quadros de Francisco Brennand possuem, em sua maior parte, o corpo de mulheres,
especificamente, jovens ou adolescentes. São mulheres nuas, ou com fardamento
escolar, com chapeus vermelhos, entre outros símbolos femininos. Nota-se uma
grande influência do polêmico Balthus, que usava meninas e adolescentes como
modelos de suas obras. Os dois artistas concordam que a beleza adolescente é
muito mais interessante que a da mulher feita, pois “a adolescência encarna o
futuro, o ser antes de se transformar em beleza perfeita. Uma mulher já
encontrou o seu lugar no mundo (...). O corpo da mulher já está completo. O
mistério desapareceu”[3].
Entretanto, apesar de ousado, o tema não
se torna sexual. O artista tenta mostrar a fragilidade e o sofrimento da
condição humana.
O
feminino faz parte do principal tema do artista: a reprodução. Visitantes se
assustam ao ver tantas vulvas, vaginas, tantos falos e ovos em seu museu e nas
suas obras espalhadas pela cidade. Há uma obra polêmica que foi feita em
homenagem aos 500 anos do Brasil. Um grande obelisco que se fixa no marco zero
da cidade. Foi alvo de muitas piadas da população e dos artistas locais. Porém
apesar de vermos tantos objetos fálicos, o artista se direciona mais ao corpo
feminino, às personagens femininas da mitologia ou da história. A mulher está
diretamente ligada à reprodução. É na mulher que a vida é gerada e é por ela
que os seres nascem e sua espécie se perpetua. Mas esta mesma entidade passa
por sacrifícios, sofrimentos, dores e a morte em prol de sua descendência.
As
esculturas de Brennand destacam as partes sexuais dos seres. As mulheres têm
seus seios, suas vulvas, vaginas e barrigas avantajados. Muitas vezes o rosto da
personagem nem aparece, como é o caso de sua Vênus. Outro exemplo é a obra Leda e o
cisne, que para o artista é o maior símbolo mitológico de fertilidade. O
sexo faz parte da natureza, é necessário para a imortalidade. O artista não
erotiza suas obras, ele mostra o que é natural, os órgãos sexuais não estão sob
uma bela penumbra, estão à mostra e destacados para impactar o nosso olhar. O
ato sexual é muitas vezes representado pelo sacrifício e pela dor. Vem antes do
gozo.
O
sofrimento feminino pode ser visto em muitas de suas esculturas, entretanto
existe uma parte de sua obra chamada As
Degoladas que são cabeças de personagens que morreram em um grande
sofrimento, como Lara e Ofélia. O artista reuniu cerca de doze mulher
sofredoras para essa série. São infelizes, muito angustiadas. Suas cabeças
estão voltadas para trás, como num êxtase dionisíaco, o que deixa suas
gargantas salientes e inchadas, como se tivessem sido degoladas. Todas as
personagens se relacionam com um fim trágico. Lara foi enviada ao submundo por
ter entregue uma traição de Júpiter, teve sua língua cortada e ainda foi
estuprada por Mercúrio. Já Ofélia se afogou por ter sido rejeitada por Hamlet.
Fiz sem grande esforço uma coleção de
esculturas de pelo menos doze delas. Todas senhoras absolutamente infelizes,
profundamente angustiadas, quase histéricas, usando grandes cabelos negros e
cujas cabeças são violentamente lançadas para trás (postura da cabeça no êxtase
dionisíaco), ressaltando-lhes as
gargantas inchadas e salientes.
A
pornografia de Brennand nos causa inquietação e não o fascínio. Mas o artista a
justifica como uma grande ajuda, como uma muleta que sustenta essa sensualidade
perversa à partir do pecado original. Antes o sexo já foi puro e natural. E em
seu templo, há uma liberdade para as mulheres mães, sofredoras e detentoras da
imortalidade.
a Francisco Brennand
fechar na mão fechada o ovo
a chama em chamas desateada
em que ele fogo desateia
e o ovo ou forno tem domadas
então
prender o barro brando no oco
de não sei quantas mil atmosferas
que o faça fundir no útero fundo
que devolva a terra à pedra que era
fechar na mão fechada o ovo
a chama em chamas desateada
em que ele fogo desateia
e o ovo ou forno tem domadas
então
prender o barro brando no oco
de não sei quantas mil atmosferas
que o faça fundir no útero fundo
que devolva a terra à pedra que era
(João Cabral de Melo Neto)
Francisco Brennand possui muito respeito pelo fogo. Suas
obras passam pelo processo de queima até doze vezes para conseguir o resultado
desejado. Mas nem sempre a ideia inicial
se concretiza. A obra vai crua ao forno e o artista a entrega para uma
purificação em fogo altíssimo. Muitas vezes ocorrem acidentes que surpreendem o
ceramista e tornam suas obras muito mais interessantes que no esboço. Elas obras
passam por grandes aventuras até chegar ao resultado final.
Há uma relação muito
especial entre o homem e a natureza nesse momento. Pois a argila se
transformará em pedra novamente. Um dos acidentes citados pelo artista e pelos
monitores do museu, que engrandeceu sua obra, foi o que aconteceu com Lara. No meio do processo, uma cinza caiu sobre o
rosto cerâmico e se transformou em uma lágrima negra, o que tornou sua
escultura muito mais expressiva e dramática.
Essas diversas queimas são
feitas para se adquirir a cor ideal. O esmalte possui uma cor viva, mas
Brennand prefere um tom ferruginoso, então faz com que todas as suas esculturas
sejam queimadas várias vezes até que as cores percam uma certa vida.
Posso dizer que a minha escultura cerâmica permanece moderna no forno-
túnel e sai, depois de sucessivas queimas, com 10 mil anos. Coloca-se no limbo,
diante das chamas, e surge prodigiosamente bela e purificada no paraíso.[1]
A fala elaborada e cheia
de referências vinda de Brennand está presente em todas as suas entrevistas e
reflete o seu ar supersticioso. Tudo em seu santuário faz sentido e tem
ligação. As obras evoluem tendo relação umas com as outras. O tema da reprodução
é sempre colocado na frente do visitante. As peças do museu estão dispostas
verticalmente para fazer referência ao crescimento. O próprio símbolo de
Oxossi, o orixá que protege a caça e os animais, é um arco e flecha, colocado
sempre na vertical em todos os seus paineis e na entrada da Oficina.
Curiosa é a contradição desse Orixá. Como ele pode ser
protetor dos animais e da caça? A explicação que se dá é que o orixá é um
predador e faz parte da natureza, já o homem não é natural e destroi o seu
meio. Dentro dessa afirmação, Brennand se protege dos maus olhos colocando
símbolos do orixá e falos.
Os ovos espalhados pelos jardins e o ovo primordial são
protegidos pelos pássaros Rocco. Uma reprodução dos pássaros que protegiam seus
ovos nas histórias do marujo Simbá. Os
falos são uma referência aos costumes greco romanos de adornar suas casas com
este objetos, representando a felicidade, fertilidade e espantando os que
queriam algum mal para os que habitavam ali.
Suas esculturas são seres modelados por ele, o grande
oleiro, que habitam num paraíso criado por ele e que não experimentaram o
pecado, assim podendo continuar no sagrado Templo/Oficina/Museu.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de ter sido
reconhecido pelas suas esculturas de cerâmica, Brennand ainda se considera
pintor. E afirma que não seria um bom escultor se já não soubesse pintar bem. O
“modesto” e simpático Brennand, leitor incansável e criador de obras
intrigantes, não pretende parar de produzir. Com
86 anos, mesmo com chapeu e bengala, o artista plástico ainda é ambicioso e
pretende tornar seu santuário uma
instituição. Tornará o seu trabalho imortal, e o reproduzirá para as próximas
gerações.
Estudá-lo foi bastante difícil, pois sua obra é muito
pessoal e a sua vida não se desfaz de sua arte. Com a publicação do seu diário,
tavez isso se tornará menos árduo. Preocupante é perceber que muitos
brasileiros não reconhecem esse autêntico artista que não se encaixa em nenhuma
escola. Ele é Brennand. Não participou de nenhum movimento. Se isolou de todos,
negou a regionalização mas usou de uma caracterísca muito brasileira: a
liberdade.
[1] BRENNAND, Francisco e
colaboração de IVO, Consuelo de. Francisco Brennand – mestre dos sonhos.
Recife: Bagaço, 2005
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Livros
·
LIMA,
Camila da Costa. Francisco Brennand :
aspectos da construção de uma obra em escultura cerâmica. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2009;
·
NÉRET,
G. Balthus – 1908-2001 – O rei dos gatos.
Köln: Taschen, 2004;
Documentários
·
DONAVAN,
Lins. Brennand – de ovo omnia.
Sistema de incentivo a cultura de Pernambuco. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=hCGnTfbqjIA>
·
FRANCISCO
Brennand – Oficina de Mitos. Produção Rede Sesc/Senac televisão.
Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=Pjt2Y1XMrUM>
·
OFICINA
Cerâmica Francisco Brennand. Produção
Conhecendo museus, episódio 39. Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=_KSMGp8vj-8>
Revistas
·
REVISTA LEITURA. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo,
mar. 2000.
Depoimentos
·
BRENNAND,
Francisco e colaboração de IVO, Consuelo
de. Francisco Brennand – mestre dos sonhos.
Recife: Bagaço, 2005
[1] BRENNAND, Francisco e colaboração
de IVO, Consuelo de. Francisco Brennand – mestre dos sonhos.
Recife: Bagaço, 2005
[2] Revista Leitura, 2000, p.13
[3] Balthus in Néret, 2003, p.36-37
[4] BRENNAND, Francisco e
colaboração de IVO, Consuelo de. Francisco Brennand – mestre dos sonhos.
Recife: Bagaço, 2005